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Quinta-feira, 04 / 10 / 12

In illo tempore; in hoc tempore

O trecho que vou citar poderia ter saído de um qualquer diário ou semanário. Mas não é verdade. O trecho que eu vou citar foi escrito no século XIX por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão!

«Entre os privilégios que ainda existem em Portugal -- e que seria bom que acabassem, uma vez que o país (...) começou evidentemente a odiar todo o privilágio -- contam-se em primeira linha os privilégios que a carreira política permite àqueles que a seguem.
Para servir tais privilégios a opinião pública obteve meios de dividir uma coisa essencialmente indivisível e una -- a probidade -- em probidade política e probidade individual.
Uma vez admitida esta casuística um tanto imoral, o indivíduo considera-se irresponsável perante a sociedade por todas as ignomínias, por todas as baixezas, por todas as infâmias que comete na política.
(...) O homem político -- simples influente eleitoral, mero candidato a deputado -- lisonjeia, mente, difama, atraiçoa. Na política portuguesa raros dão um passo que o não conquistem por algum destes vícios. Toda a gente o sabe. As eleições fazem-se ou pela compra da consciência a dinheiro, ou pela promessa, pela lisonja, pelo dolo, pela mentira. Não há integridade nem limpeza de carácter que resista à influência degradante e sordidíssima de uma campanha eleitoral. Em presença do eleitor, nas conversações, nos comícios e na imprensa, para desvanecer atritos para abater dificuldades, para minar resistências, o candidato, de concessão em concessão, de recuamento em recuamento, de curva em curva, de cortesia em cortesia, desdiz todas as suas opiniões, desmente todos os seus propósitos, falseia todas as suas convicções, renega todas as suas crenças. A campanha eleitoral é uma navegação pestilencial pelo cano de esgoto de todas as imundícies da conveniência, do egoísmo e da ambição. Tal tribuno que hoje bate nos peitos com o punho cerrado, fazendo saltar pelos olhos chispas de valor e deitando pela boca os mais estrondosos borbotões de independência, escumas da raiva cívica e patriótica -- perguntai aos eleitores e aos ministros que o viram passar -- foi para esse lugar de rojos pela lama, com os joelhos no chão, babando-se em condescendências asquerosas e em risos nojentos.

A luta partidária o que é? Nenhum partido se distingue dos outros pelas ideias que professa. As ideias são sempre as mesmas -- poucas, pequenas, mas idênticas. Os partidos têm para as ideias de seus gastos um mealheiro comum sebento de velhice, de economia e de miséria. O que estabelece as distinções, o que assinala as diferenças, o que suscita os combates, e o que resolve as vitórias, é a intriga (...).»

Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, As Farpas, «Agosto de 1871»
publicado por livrosepalavras às 20:34
Quinta-feira, 04 / 10 / 12

...

«Prece

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda,
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão de vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem -- ou desgraça ou ânsia --,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância --
Do mar ou outra, mas que seja nossa!»

Fernando Pessoa, Mensagem
publicado por livrosepalavras às 17:52
Quinta-feira, 04 / 10 / 12

...

«Despondency

Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram...

Deixá-la ir, a vela que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade,
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do Sul se levantaram...

Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
À morte queda, à morte silenciosa...

Deixá-la ir, a nota desprendida
Dum canto extremo... e a última esperança...
E a vida... e o amor... deixá-la ir, a vida!»

Antero de Quental, Sonetos
publicado por livrosepalavras às 17:09
Quinta-feira, 04 / 10 / 12

Momento de poesia

Dedico este belíssimo poema de Fernado Pessoa aos cerca de 10 milhões de portugueses.



«O andaime

O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anónimo e frio,
A vida vivida em vão.

A 'sp'rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobe mais que a minha 'sp'rança,
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam -- verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperança nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Sem morto das águas mansas
Que correm por ter de ser,
Leva não só as lembranças,
Mas as mortas esperanças --
Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim --
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser -- muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.»

Fernando Pessoa, Poesia
publicado por livrosepalavras às 16:55
Espaço dedicado aos livros, às artes, às ideias e às impressões do dia a dia

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